quarta-feira, 1 de abril de 2015

O dia em que me chamaram de 'coxinha' ...

São 3 horas da manhã, perdi o sono pela segunda noite seguida, cheia de indagações, e um coração aflito, cheio de perguntas generosas contra os opressores. Não durmo em paz, e nem poderia, eu sou parte da mesma matéria de que constitui o homem, todos os homens da face da terra. 

Sinto as dores, as punhaladas, as chicotadas do racismo institucional, da desigualdade social, do preconceito. Sinto as dores das injustiças, da violência, contra semelhantes ... Como poderia ficar em paz ?

Acordei com o ruído dos trabalhadores da feira-livre que começam seus trabalhos às 3 horas da manhã, um barulho ensurdecedor que já me obriguei a acostumar, de caixas, carros, gritos. Como disse, acostumei, porque acontece sempre de terça para quarta, desde antes de eu nascer, é a rotina deles.

Embaixo da minha janela há uma banca de verduras. Uma família de feirantes cuida do negócio. O pai, a mãe, dois rapazes e duas moças. Eles tem o sotaque do Norte, deve ser mais uma daquelas famílias que saem do fim do mundo pra tentar alguma coisa na cidade grande.

Um dia, fiquei observando daqui (da minha janela), a sincronia e a harmonia com que eles serviam as pessoas, como eles repartiam as tarefas, iniciadas por volta das 2 horas da manhã.

Reparei que uma das irmãs vinha com o cabelo arrumado, as unhas feitas, vestia-se bem, muito vaidosa. Tinha um sorriso, daqueles que te tiram até as suas meias e te colocam no bolso. Um dos rapazes parecia saído daquele livro do Émile Zola, "Germinal", era um verdadeiro operário: forte, incansável, suado e que, no pico do dia, na hora da xepa, gritava como um urro:

__ Ooooolha, olha, tudo fresco, é agora, pra ir embora, alface lisa, crespa, americana, está na hora, é agora !!!!!!!

Em repetidos refrões, os berros iam ficando cansados. Era meio dia, o sol batia no rosto dele.

Enquanto isso, as duas moças, comiam uma quentinha, sentadas num caixote improvisado. O irmão mais jovem e o pai começavam a desmontar a tenda, enquanto a mãe contava a féria do dia.

Pensei, como seria a vida dessa família, que acorda unida, juntos num ritual, e trabalha, e divide, reparte, coopera, e tira o seu sustento da mesma fonte ?

Que força é essa ? O que pode ser mais forte do que uma família que trabalha unida, junta, com entusiasmo, esperança ? O que faz acordar a 1 hora da manhã e terminar pelas 3 da tarde, pra no outro dia começar tudo de novo ? É uma empresa, por suposto, é um negócio, é o patrimônio deles, cada um é um pilar dessa instituição.

Que nome posso dar a essa força ?

Eles são felizes, isso é fato.

Uma madrugada dessas chovia muito, aquela chuva que corta a carne, sabe ? O vento levava as barracas recém-montada, o vento, a chuva, meu Deus, eu dizia para mim mesma: __ Parece que a natureza toda, o Universo até, estava contra esses feirantes. 

Foi horrível. Abri a janela e observei um ajudando o outro, dando abrigo, oferecendo mãos, braços, cobertura. Acho que naquela noite eles perderam a metade da sua mercadoria, porque a chuva subiu, e encheu a calçada, levando tudo. Estavam desolados, perderam um dia de trabalho, mas o que eu vi foi uma verdadeira lição de humanidade, em gestos simples, percerias, em silêncio. Um ajudava o outro no que podia; aquela madrugada parecia que Deus estava revoltado com o Mundo, aliás, parecia o fim do mundo: a chuva não cessava e eu testemunhei da minha janela aquele movimento, uma verdadeira colaboração de classes. Solidariedade!

Pensei alto: __ O que eu podia fazer ? 

Não conseguiria ficar omissa diante daquelas famílias, uma porção de imigrantes feirantes, cada um com a sua história, que como a minha chegou aqui, porque imaginaram que seria um país fértil pro plantio, pra crescer, pra educar seus filhos, trabalhar e ter paz. Porque há muito tempo dizem que o Brasil é o país do futuro, mas acredito que esse futuro nunca chega pra esse povo!

Desci, ofereci uma garrafa de café. Era o mínimo que eu podia fazer, não por um ato de misericórdia, ou compaixão, acho que qualquer ser que tenha na veia um pouco de humanidade faria o mesmo.

Os 'Justel', por exemplo, chegaram ao Brasil no final do Século XVIII. Meu bisavô, Sr. Segundo Carraceto Justel, tinha uma fazenda de manzanas (maçãs), em Castrocontrigo. Castrocontrigo é um município da Espanha, na Província de León, comunidade autonoma de Castelo e Leão.

Ali vivia uma comunidade, que damos o nome de pueblo, que se chamava Justel. Ele casou-se com sua prima Ana, bem mais jovem que ele. Ana era de Andaluzia, o casamento foi forjado, arrumaram tudo para que os dois jovens pudessem sair do país e ter alguma esperança de vida. Chegaram ao Brasil de navio, repousaram na Casa dos Imigrantes, foram para o Interior e começaram a trabalhar na roça, onde tiveram quatro filhos, sendo um deles o meu avô paterno, Alcides Justel, que também foi comerciante, teve onze filhos, e vários comércios, armazéns, quitandas; meu avô foi um grande operário.

A história da minha família não é tão bela, na verdade eu diria que é bem trágica. Mas é impossível não comparar com esses trabalhadores que vejo embaixo da minha janela.

Brinco com o nome Justel, digo que sou Justel e por isso carrego Justiça até no nome, mas, brincadeiras à parte, tenho a destra da justiça em minhas mãos sim, e da injustiça também. A injustiça me corrói, às vezes, e, nos momentos de fúria, digo:

__ Isso é injustel demais para mim !!!!!!!

Em tempos de campanha, é comum se ver na feira os políticos bacanudos, sorridentes, comendo pastel, coxinha, bebendo caldo de cana, falando com as donas de casa, os feirantes, ahhhhhhhh, isso me dá asco !!!!

Na última campanha vi uma cena assim: o candidato bacanudo deu uma nota de 10 reais para um tiozinho que já é bem conhecido aqui na minha rua, ele fede, porque sua perna está apodrecendo. O político, que eu conheço bem, pediu ao seu assessor que tirasse uma foto no momento generoso em que ele ajudava o maltrapilho, fedido.

Ai, essa gente que governa com o fígado ...

As histórias se repetem, não há mudanças, nem transformações que nos façam vangloriar-se.

São 04h40min, escuto os caminhões dos feirantes chegarem, viajo no tempo, penso nos meus antepassados, poderiam ser eles, eu me vejo ali embaixo, poderia ser uma daquelas moças ...

Escuto de longe um homem cantando, é o vendedor de batatas, que fica do outro lado da rua. Ele canta Lupicínio Rodrigues:

" (...) Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito 'inda' mora, e é por isso que eu gosto, lá de fora, porque sei que a falsidade não vigora (...)"

Ele não canta, ele ora!

Vou tentar dormir, daqui a pouco amanhece, e vou descer com uma garrafa de café. Afinal, já nos tornamos amigos, depois daquela madrugada horrível.

É dia de feira !!! Do pastel do japonês, das frutas da família italiana, do vendedor de batatas que canta Lupicínio, da família nortista que vende verduras bem aqui, embaixo da minha janela, do tiozinho que se arrasta para ganhar alguns trocados e tantos outros ...

É dia de trabalhar, minha gente!

O Brasil ainda está longe de ser o país do futuro !

Vou pedir pra sonhar com um mundo mais justo, com a promoção da igualdade, vou pedir pra sonhar com um mundo sem preconceitos, sem esse vale-tudo para galgar postos de posição, essas parcerias ambiciosas; vou pedir pra sonhar com um mundo sem boicotes, sem corrupção, um mundo mais belo, em que o trabalhador não precisará mais ser algoz do seu próprio trabalho, quem sabe ... alguns sonhos são de carne e osso!

... ah, estava quase me esquecendo, me perdi na história, e parece que não me referi ao título deste post no texto, ora ... o dia em que me chamaram de 'coxinha', respondi:

__ Isso, sou sim, mas sou uma 'coxinha' vermelha!








Tatiana Justel

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