domingo, 12 de agosto de 2012

Diálogos entre a poesia e a pintura 2º parte

Poema do livro Tratado do anjos afogados
 de Marcelo Ariel



Georges de Tour
Cristo com São José na oficina de carpintaria
Esse menino como outro qualquer
É Cristo?
Isto 'cristianiza' qualquer criança...
Mas o mistério do quadro está na vela apagada
De onde vem a luz que ilumina o menino?
Ele parece explicar algo sobre o mistério ao velho,
Mas nós não podemos ouvir

(Tratado dos anjos afogados. Ed.LetraSelvagem-2008)


O poema levanta a seguinte questão: De onde vem a luz que ilumina o menino com a vela apagada na mão
Num momento entre pai e filho, em que um deixa de ser o Santo e o outro Deus
e a criança deixa de ser a única a ser cristianizada, mas continua iluminada por uma luz Celestial,
O mistério do quadro está na luz apagada ou nas expressão da face do velho , que escuta com atenção a criança? 
São José está ensinando o filho a fazer algo ?
Qual o movimento dessa energia que se delimita entre os olhares?

Marcelo Ariel: Sim,no poema de um certo modo problematizo a questão da origem da luz, ela parece vir de dentro da face do menino, não creio que a questão seja apenas a da ' deificação', desta luz e isso parece obvio cumpre ali o mesmo papel da  auréola, é como uma auréola que se mistura com a aura, para mim a questão é a da origem da deificação como origem da luz, talvez seja esta a grande questão do poema e aqui o poema ao comentar o quadro se desprende um pouco dele para elaborar uma tese. A palavra 'mistério' é estratégica e se refere ao silêncio que todo grande quadro evoca, no caso deste é um ' silêncio que retrata o momento da fala' e existe um intimismo na cena, justamente esse intimismo é a fonte do mistério do quadro que aparece como pergunta no poema, o que torna essa criança especial é o que orna qualquer criança especial. O pintor deifica a figura da criança, neste quadro com traços de androginia tipica das representações dos Arcanjos, é como se La Tour operasse uma fusão entre o Cristo-menino e o anjo que anunciou seu nascimento. Por outro lado a figura do Pai como ' o humano' é reivindicada pelo quadro. É esta a questão quem levou ao poema e não a outra, digamos, metafísica. O movimento da energia que  se delimita entre os olhares, que você menciona como um dos centros da sua pergunta é  o da interioridade, a luz aqui também é um simbolo da sabedoria, não podemos nos esquecer do contexto da cena, Cristo ficou se não me engano três anos fora de casa e é reencontrado por seus pais discutindo com os doutores do templo ou seja debatendo com os sábios cabalistas do templo judaico, a luz aqui também significa o ' ein sof' da árvore da vida. Finalizando na cena vemos José ensinando carpintaria para seu filho, talvez ele esteja ensinando o menino a talhar uma cruz.



Diálogos entre Poesia e Pintura


  POEMA DO LIVRO:
 TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS

DE MARCELO ARIEL


IMAGINADO O LOUVRE


1. 
Sir Joshua Reynolds:
Mister Hare
Ela quer algo
que está fora do quadro?
Os galhos da árvore,
com o vento,
quase tocam suas mãos
como no quadro de Michelangelo Deus toca
as mãos de Adão

( Tratado dos Anjos afogados.Ed. LetraSelvagem-2008)



     Diálogos entre  a poesia e a pintura: Marcelo Ariel

No meio  do horror , surge Imaginando o Louvre ,
o poeta atravessa a pintura 
questiona a protagonista
como espectador 
e deixa-nos uma pergunta no ar
acredito que a pintura de todas as artes 
é a mais ingrata
é solitária
para quem a observa
e para quem a fez
e o poeta 
em seu pequeno opúsculo
decifra o irreal e o torna real 
no momento que se faz  a poesia?

Marcelo Ariel: Se você se refere ao 'real' do Horror, afirmo que é imprescindível questionar as bases desse real fabricado pela incapacidade humana de compreender a vida em seu potencial edênico,não sei se atravessei o quadro, melhor dizer que fui atravessado por ele, meu amigo o grande pintor  Gastão Frazão, infelizmente já falecido, costumava dizer que  o maior espanto diante de um quadro ocorre porque nos esquecemos que ' aquilo é apenas tinta' , o mesmo podemos dizer de um poema, tinta e palavra se equivalem quando se trata de criar um universo de ilusão capaz de ampliar nossos 'modos de ver e sentir', você também evoca a solidão do pintor e a do poeta, bem no caso do poeta quanto mais profunda a solidão melhor a tela, não se trata apenas do desejo de comunicar algo da ordem do transcendente, essa coisa cada vez  mais oculta e cada vez mais óbvia chamada ' vida do espírito', na vida do espirito  a profundidade da solidão é a medida da profundidade  do olhar. Gostei do início de sua pergunta, ' no meio do horror', se estamos no meio, então existe um movimento, um processo de atravessamento, penso que é exatamente deste ponto que podemos, nós, enquanto ' o ser em geral'  ou a humanidade continuarmos nossa caminhada, nossa busca para sair do horror. A imagem do Louvre serviu no Tratado dos anjos afogados, esse meu segundo livro que se identifica do a primeira parte da ' Comédia' de Dante, como um contraponto para a imagem de uma favela incendiada, se existe a capacidade de materializar favelas, também existe a de materializar o equivalente do Louvre no mesmo espaço de uma favela, é este o  pensamento político por trás da escolha do Louvre, se não fui ao Louvre, tampouco estive no meio do incêndio, eis aí os paradoxos e os poderes de uma imaginação quando ampliada por uma sensibilidade poética e todos sem exceção possuem esta sensibilidade. Você também comenta o fato poético, vamos chamá-lo assim onde o ' ser em particular' do poeta se coloca como espectador a partir do interior do quadro, bem isto foi inaugurado por Velásquez em seu quadro ' As meninas' e gosto de dizer que este quadro é o maior poema silencioso e sem palavras já realizado, apenas transfiro o que chamo de ' efeito Velásquez' para outros quadros  com a mesma intensidade de significados.Por fim a idéia do ' O irreal tornado real' se aplica mais ao sistema financeiro de todo o mundo do que ao meu método de escritura, trata-se do ' real tornado visível' do Sr. Paul Klee, o ' irreal tornado real' são as guerras e o sistema político-partidário, o sistema financeiro e esta aberração da literatura, o sistema jurídico  que confere uma falsa onipotência aos juízes e desembargadores. Também não vejo ingratidão no exercício de uma pintura potencialmente poética ou de seu complemento e irmão gêmeo, o poema que a evoca. Vejo ingratidão no modo como as sociedades tratam seus poetas e pintores, seus artistas, condenado-os a uma vida muito difícil.